16 de jul. de 2012

Jornalismo cultural sem Norte

Por Priscila Mengue

Foto: Priscila Mengue


Num apartamento localizado no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, começou a minha busca pela resposta a uma curiosidade pessoal: “O que houve com a Revista Norte?”. Intrigava-me o fato dela subsistir no imaginário cultural, visto que nunca teve um encerramento oficial ou uma despedida. Muito pelo contrário, seu último editorial era entusiástico, fazendo menção a sua indicação como uma das finalistas do Prêmio Fato Literário. Até mesmo Vitor Necchi ainda se autodenominava, nas redes sociais, como editor da Norte.



Pela internet, realizei dezenas de buscas, pois me parecia inverossímil a inexistência de sequer um único comentário sobre o fim da publicação. Ao mesmo tempo, os mecanismos online também não apontavam para o desenvolvimento de algum exemplar que fosse além do número 17, referente aos meses de dezembro de 2010 e janeiro de 2011.

Necchi, colaborador do periódico desde a edição 3 e editor desde a 10, confirmou o óbvio: a Norte realmente havia findado. Por meio dessa constatação que, para olhos alheios poderia parecer óbvia, percebi o quão raras são as publicações culturais no Rio Grande do Sul. E mais, o quão curto é o tempo de vida das mesmas. Vire e mexe, deparo-me com um novo jornal por aí, mas assim como ele surge, em pouco tempo ele vai. Com as revistas é a mesma coisa: em uma breve pesquisa encontrei dezenas de títulos surgidos nas últimas décadas. Desses, poucos permanecem, mas não sem sofrer abalos.

Livros, artes e ideias

Com o subtítulo Cultura no Sul do mundo, em novembro de 2007, foi lançada a Revista Norte. Idealizada por Tito Montenegro, um dos sócios da Arquipélago Editorial, a publicação se propunha a abordar, de forma aprofundada e crítica, assuntos da cena cultural, independentemente das raízes regionalistas locais. Desde seu nascimento, portanto – mais precisamente, ao ser batizada de Norte –, o periódico já se assumia avesso às ideias bairristas. Tito, inclusive, deixa bem claro que a publicação não limitava seu conteúdo à cultura promovida em pouco mais de 3% do território brasileiro. “A gente achava, e acha ainda, que a arte se justifica em si, inclusive, em relação a essas coisas geográficas e de pertencimento a uma determinada cultura fechada ou não. Se havia uma coisa que era boa, a gente colocava na revista. O fator local não funcionava, para a gente, como justificativa para uma reportagem. Ele pode ser um modulador do teu ponto de vista, te ajuda a te dar referências, mas não é tudo. Queríamos produzir uma revista que dialogasse mais com o resto do país e com outros países também. Não que a gente não achasse bacana o que é feito por aqui, mas não queríamos insistir nas mesmas pautas, os mesmos ganchos dos jornais.” – afirma.  Tanto foi assim, que a matéria de maior repercussão da Norte foi justamente o texto A invenção da superioridade – como o ufanismo gaúcho instiga o radicalismo e o preconceito, de Vitor Necchi, o qual gerou centenas de comentários provenientes de núcleos que iam muito além do público cativo da revista.


Além desse aspecto pouco afeito às limitações geográficas, a publicação também buscava não se ater à agenda cultural, libertando-se simbolicamente dos chamados ganchos jornalísticos. Isso significa que o conteúdo iria, ao menos teoricamente, além dos lançamentos do mês ou da nova turnê internacional que se apresentaria no estado mais ao sul do país. O fato é que, mesmo que seus colaboradores quisessem, seria difícil produzir um conteúdo de acordo com a agenda, pois a publicação era mensal, isto é, até o lançamento o texto já estaria datado.


Premiada com o Açorianos e o Joaquim Felizardo de 2009, a revista evoluiu no decorrer de seus três anos de existência. Inicialmente, eram poucas páginas coloridas e um menor número de colaboradores. Aos poucos, e em parte devido ao ingresso de Necchi como editor – distribuindo um pouco mais o trabalho, que ficava concentrado na figura de Tito Montenegro –, o conteúdo foi ampliado, a diversidade de pessoas envolvidas cresceu e, até mesmo, o subtítulo da publicação mudou para Livros, artes e ideias.  Para o editor da Norte, a última edição da revista foi a melhor de todas. “Eu diria que ela deixou de circular em um momento de plenitude, na qualidade. Ela não definhou. A fragilidade comercial dela não impactava o conteúdo”. Tito concorda com essa afirmação e acrescenta: “A última matéria de capa, uma entrevista do Rodrigo Bonaldo com o Carlo Ginzburg, foi muito representativa daquilo que a gente queria em termos de qualidade, de fazer uma boa análise, de fazer alguma coisa que não fosse tão superficial. Então, olhando desde o começo, eu acho que a revista foi melhorando aos poucos. Foi uma pena que ela teve que terminar”.

Com tiragem de 3 mil exemplares, a Norte era distribuída, principalmente, em Porto Alegre, com alguns pontos no interior do estado e em Brasília, Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. Ao longo de seus três anos de existência, foi comercializada pelos valores de R$ 3,50, R$ 5 e R$ 8. Após a edição 14, passou a ser disponibilizada gratuitamente. A opção de torná-la grátis foi bem-sucedida no sentido de ampliar a circulação da revista. Apesar de, teoricamente, abarcar um público A-B, o periódico bimestral costumava encalhar nas bancas, chegando a vender apenas metade de sua tiragem. Depois do fim da cobrança, os estoques da Norte esgotavam. O que evidencia um estranho paradoxo. O perfil econômico de leitores da revista abrange, teoricamente, pessoas que podem pagar R$ 5 por algo que lhes interesse.

Entrevistado na sede da Arquipélago Editorial, uma sala comercial localizada no bairro Menino Deus, também na Capital dos gaúchos, Tito Montenegro aponta a dificuldade de captação de anunciantes como a grande responsável pelo fim da revista.  Algumas edições da Norte chegaram a ter apenas dois espaços de publicidade, o equivalente a cerca de R$ 3 mil. Mesmo com os custos relativamente baixos do periódico, esse valor não era suficiente para sanar os gastos, que eram bancados em maior parte pela Arquipélago. Segundo seus realizadores, a manutenção da publicação só foi possível durante três anos devido à grande preocupação em economizar gastos. Tanto que a impressão era feita na mesma gráfica que imprimia os livros da editora, a distribuição era realizada pelos próprios editores e todos os colaboradores trabalhavam de forma voluntária.

O outro ponto relacionado ao encerramento da revista foi a dificuldade em encontrar o seu público leitor. Devido às limitações financeiras, seus realizadores apostaram numa distribuição direcionada em locais de maior circulação cultural como livrarias e cafés, criando pequenos nichos de distribuição dentro de Porto Alegre e do estado. Na capital gaúcha, os pontos de disponibilização da revista estavam localizados basicamente nos bairros Cidade Baixa, Bom Fim, Moinhos de Vento e Passo D'Areia. No entanto, nesse aspecto, a revista talvez tenha se equivocado em pressupor que os interessados em cultura ocupem somente esses cantos da cidade. Museus, sebos, teatros, instituições de educação e centros culturais poderiam ser boas alternativas de distribuição que abarcariam um público afeito à cultura e bem mais diversificado, em comparação a locais frequentados, praticamente de forma única, pelas classes mais abastadas.


Desafios e dificuldades 

A dificuldade no processo de captação de anunciantes não é um fenômeno restrito à Norte. Até mesmo publicações que recebem apoio público, como a Aplauso, penam em busca de publicidade. Para escritor e pesquisador da área literária Antônio Hohlfeldt, os empresários têm pouco interesse na cultura. Tito Montenegro concorda e acrescenta:“O mercado aqui no estado não é muito forte em comparação ao Rio, à São Paulo ou à Belo Horizonte. Quando as empresas investem, é basicamente via leis de incentivo, pois mesmo que não dê um retorno de marca ou de venda, dá um retorno de imposto de renda”.

Em geral, as revistas culturais estão alheias ao mercado. Os dois principais expoentes desse segmento, a Bravo! e a Cult, têm tiragens de 36 mil e 35 mil exemplares, respectivamente – sendo que a circulação líquida da primeira gira em torno dos 30 mil. Esses números tornam-se ainda mais inexpressivos quando se compara a Bravo! com os outros veículos da própria editora Abril. De um total de 47, a publicação é a segunda menos popular. A Placar e a Quatro Rodas, que sequer são as mais populares da editora (estando em 36º e 8º no ranking de vendas), têm tiragens que ultrapassam os 100, 200 mil exemplares, por exemplo. Tais dados evidenciam um estranho aspecto dos leitores brasileiros, pois, ao menos da teoria, a cultura é um segmento mais amplo e, portanto, atingiria um número de leitores superior ao de publicações focadas no futebol ou em automóveis. Os números se tornam ainda mais assombrosos quando se destaca os líderes desse ranking: Veja (1.222.712), Nova Escola (664.708) e Cláudia (490.060).

Para Antônio Hohlfeldt, esses números evidenciam a mudança no perfil do consumidor, principalmente em relação ao suporte. Para ele, a pouca popularidade das revistas culturais está atrelada à ascensão das plataformas online. “A qualidade do leitor caiu muito, ao menos para o veículo impresso, mas isso não quer dizer que este leitor potencial não esteja lendo ou se ocupando de outras coisas importantes, culturalmente falando, através da internet.” O pesquisador ainda destaca qualidades que esse formato tem em comparação aos demais: é mais barato, rápido, abrangente e criativo. Ou seja, para Hohlfeldt, a internet exerce uma concorrência acirrada em relação aos outros veículos.

Por outro lado, o também estudioso das letras Luís Augusto Fischer aponta mais aspectos. O pesquisador não acredita que a suposta mudança no perfil do consumidor de cultura seja o centro do problema. E acrescenta: “A tradição de cultura exigente no Brasil não é tão forte assim, e nunca foi a ponto de resistir à intensa mudança no jornalismo, que, em geral, tem dado um enorme protagonismo para bobagens como a vida de celebridades e tal. Tudo isso rebaixou a presença da cultura nos meios tradicionais, especialmente os impressos.” – afirma. Ele ressalta, no entanto, que realmente ocorre uma mudança no perfil de consumo de cultura: “a aproximação entre arte e entretenimento por certo é uma das grandes razões para a perda de força do debate, da crítica, da discussão, que são o mais importante de uma revista de cultura”.

Em relação a publicações made in RS, Hohlfeld se mostra cético: “Não acho que uma publicação, mesmo na internet, possa se sustentar se for apenas regional. Com as novas tecnologias, isso perde o sentido. O que não quer dizer que se torne alienada em relação a sua própria característica cultural”. Em contrapartida, Fischer acredita, com ressalvas, que seja possível sim o desenvolvimento de uma publicação gaúcha. “Sou a favor de todas as tentativas de fazer revista de cultura, em papel ou no ar (prefiro em papel, claro). O caso é que a gente precisa saber que uma revista de cultura vive de uma força externa a ela, que vem da pulsação da vida cultural, do grupo que ela expressa, das demandas do leitor, etc. Não dá pra imaginar que revistas sem personalidade sobrevivam, só porque abordam cultura. No mais, a gente precisa é de reportagem, muito mais isso do que palpite.” – completa.

Possibilidades de retorno

Parafraseando porcamente Drummond, havia uma pedra, uma pausa, a falta de dinheiro, a escassez de leitores no meio do caminho, mas ainda há estrada. A música clássico-instrumental ao fundo, durante os mais de 40 minutos de entrevista com Necchi, era um indicativo da tristeza por encerrar um trabalho que, apesar de não remunerado, era visto com ares de seriedade. O ex-editor mostrou-se dedicado a relançar a Norte, mas, dessa vez, somente em versão online. Segundo ele, já foram feitas algumas reuniões com pessoas interessadas a abraçar a causa. No entanto, tudo está sendo feito com muita cautela. Tito, no entanto, complementa que o retorno da revista ocorrerá somente se houver um planejamento elaborado, fugindo à efusão do lançamento em 2009. “A gente vai muito na onda, 'Ah, vamos fazer. A gente dá um jeito'. Isso é legal, a gente foi até o número 17, mas se a gente tivesse um planejamento mais bem feito, mais apurado, talvez ela tivesse continuado. Se a gente retomar a revista, eu não gostaria de fazer uma coisa que tivesse perigo de durar um ano ou dois. Na minha visão, teria que ser um projeto para, no mínimo, dez anos, que tivesse um planejamento, que tivesse um plano de rendimentos, de marketing e tudo mais, à longo prazo.” - ressalta. Tito também lamenta a ideia pelo possível abandono do papel. No entanto, é realista em afirmar que a chance da Norte voltar nesse formato é bastante reduzida devido ao alto custo de impressão e distribuição.

No entanto, não somente de sonhos, objetivos e lamentações vive os dois principais desenvolvedores da revista. Vitor Necchi se orgulha em comentar que a publicação era feita de forma voluntária, séria e dedica por aqueles que tinham vontade de participar. Ele lembra de que ele e Tito costumavam dizer que o periódico era um ponto de encontro de intelectuais, artistas, jornalistas do Rio Grande do Sul, por meio do qual surgiam ideias e conteúdos de qualidade. Tito concorda com a opinião do colega, e acrescenta: “De alguma forma, conseguimos dar essa cara para a revista”.

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