12 de jul. de 2012

Política, guerra e o caráter humano na segunda temporada de Game of Thrones

Por Letícia Garcia

"O norte lembra" - Casa Stark
 Divulgação / HBO
Depois do grande alcance da primeira temporada, os esperados dez episódios dessa segunda temporada de Game of Thrones trouxeram gratas surpresas à trama e deixaram grandes expectativas para a sequência, que chega ano que vem. Exibida pela HBO entre abril e junho de 2012 no mundo todo, a segunda parte corresponde ao segundo livro da série As Crônicas de Gelo e Fogo, A Fúria dos Reis, lançado por George R.R. Martin em 1998 nos Estados Unidos. A opção por fazer série ao invés de filmes deu muito certo – tanto pela fidelidade à história que o tempo maior permitiu quanto ao retorno de público e financeiro. A rede HBO, já conhecida pela produção de séries como Band of Brothers (2001), investiu na trama de fantasia medieval com minúcia na construção dos ambientes e do figurino, além de uma seleção de ponta do elenco. A qualidade visual vai da abertura à iluminação, que marca os diferentes lugares de Westeros, além dos efeitos especiais. O cuidado com a edição também é um destaque da HBO. Em uma das cenas mais bem feitas da temporada, Tyrion Lannister (Peter Dinklage) fala de forma intercalada com três pessoas: os interlocutores dividem a cena com o personagem num jogo de imagens muito bem feito.


Os livros de Martin são considerados seguidores de O Senhor dos Anéis, do britânico J.R.R. Tolkien, na linha de clássicos da fantasia medieval. A trama do autor levanta questões voltadas às particularidades perversas do homem, seu fragmentado caráter e sua sede de poder. A saga tem um pé na realidade histórica, assemelhando-se mais ao período medieval do que Tolkien, que se aprofunda na mitologia nórdica. Visualmente inspirado na Idade Média nos hábitos e figurinos, a trama também se relaciona de perto com o período na organização social (rei, suserano, vassalo, cavaleiros, servos), nos valores medievais, como a honra e a ética cavaleiresca, e na brutal violência do período. Os ambientes são medievais, alguns com origem na história. A Muralha, um dos espaços do continente fictício de Westeros que protege o povo dos Sete Reinos, é inspirada na Muralha de Adriano, do ano 126, que separava o mundo civilizado dos bárbaros. Esse espaço é central para a história da segunda temporada. Outras influências também estão na Patrulha da Noite, que guarda a Muralha, que tem algo dos Templários medievais, e também nas casas Stark e Lannister, principais famílias de Game na disputa por poder, pontas mais fortes no jogo político que domina Westeros, inspirada nas históricas famílias York e Lancaster, que duelaram pelo trono inglês na Guerra das Rosas (1455).

Cersei Lannister (Lena Headey): poder e
ambição na guerra pelo trono
 Foto: Helen Sloan / HBO
Com a morte, na primeira temporada, do rei Robert Baratheon (Mark Addy), agora seis reis disputam o comando de Westeros, e todos reúnem motivos que justificam a tomada do trono. Joffrey Baratheon (Jack Gleeson) é herdeiro direto, mas existe a suspeita de incesto entre a rainha Cersei (Lena Headey) e o irmão. Stannis Baratheon (Stephen Dillane) é irmão mais velho do rei, sucessor por direito se Joffrey não for seu filho. Renly Baratheon (Gethin Anthony) é o irmão mais novo, e reclama o trono pela ausência de Stannis na corte e por ter o apoio maior de nobres e da população. Robb Stark (Richard Madden) é proclamado Rei no Norte, buscando a separação do Norte dos Sete Reinos e vingança pela morte do pai. Balon Greyjoy (Patrick Malahide) quer o comando das ilhas e do Norte. Por fim, Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) é da “linhagem do dragão”, do Rei Louco Aerys, deposto numa rebelião que pôs Robert no trono. As casas dos senhores nobres aliam-se aos reis, buscando força nessa fragmentação do poder. Em meio à guerra da temporada, acordos de interesses de casas rivais (alianças principalmente por casamento) fazem parte do jogo político. Enquanto isso, a população, abatida pela fome e miséria, se manifesta contra a disputa pelo trono e o descaso dos poderosos. Mas a guerra se concentra nos nobres, e a menção à revolta do povo se faz presente em poucas (e boas) cenas. A disputa pelo poder é central na série. A rainha regente Cersei, na ótima interpretação de Headey, protagoniza uma cena muito bem feita – tanto visualmente quanto pelo texto – com Petyr Baelish (Aidan Gillen), mestre da moeda do reino. Com o poder medieval de Westeros em Cersei, pode-se ver medo em Baelish, que, apesar do pouco caso da rainha, também está jogando o jogo, e é um dos personagens que tende a crescer na temporada seguinte.

Theon Greyjoy (Alfie Allen), um dos personagens
que se complexifica na segunda temporada
 Foto: Helen Sloan / HBO
O foco nos personagens e a trama centrada no caráter humano aproxima a obra fantástica dos espectadores atuais. Muitos desses personagens reafirmaram a característica principal da trama – maniqueísmos não existem. Bem e mal não se separam totalmente. Não há personagens plenamente bons e honrados, assim como não há os puros de maldade. O que há é uma balança de interesses e crenças que movem ações, e ações que impulsionam outras – um homem que defende a honra da família, mas que para isso assassina sem julgamento, outro que busca justiça para o reino, mas que quebra promessas. A nova temporada acrescenta personagens à trama, como o cavaleiro-contrabandista Davos (Liam Cunningham), a sacerdotisa Melisandre (Carice van Houten) e o misterioro J’aqen Hagar (Tom Wlaschiha), e faz outros personagens se adensarem. Theon Greyjoy (Alfie Allen), quase um figurante na primeira temporada, protagoniza ações contraditórias e instáveis, que reafirmam a profundidade na construção dos perfis de Martin. Solidão, rejeição, orgulho e ambição se misturam para formar um dos personagens mais complexos da temporada, ambíguo e à procura de si mesmo, que vai mostrando impulso, desorientação e fragilidade no decorrer dos episódios.

A figura da mulher continua em destaque na trama, mais fortemente ainda na nova temporada. Assim como no período medieval, a influência feminina é “interna”, se dá por trás das cortinas. Catelyn Stark (Michelle Fairley) orienta o governo do filho, Rei no Norte, e Cersei Lannister participa ativamente dos jogos de poder como rainha regente, até que o filho tenha idade para assumir o poder. A interpretação das atrizes é marcante para a trama, e, apesar de alguns personagens seguirem estereótipos medievais, como a donzela Sansa Stark (Sophie Turner), que continua com os valores heroicos idealizados da época, a maior parte deles ganha profundidade e se complexifica.

Varys (Conleth Hill, à esq.) e Tyrion (Peter Dinklage)
protagonizam diálogos sobre o jogo político da trama
 Foto: Helen Sloan / HBO
O livro é contado por diversos ponto de vista, em terceira pessoa, com narrador externo. O nome dos capítulos leva o nome dos personagens que guiam aquele trecho. O mundo particular de cada um, muito explorado nos livros, é recuperado em parte pelos diálogos e montagem das cenas. O destaque aos diálogos do livro foi menos presente nessa temporada, mas, quando aconteceram, fazem cenas memoráveis. A interação de Tyrion, conselheiro do rei, e Varys (Conleth Hill), eunuco que faz parte do conselho real, são preciosas para acompanhar detalhes do jogo político e de interesses. As cenas dos irmãos Tyrion e Cersei imperam na linha de diálogos cheios de tensão e desconfiança. Tyrion, aliás, é o personagem de destaque da temporada, e o que mais traz a atmosfera de ponto de vista presente no livro.

O autor da saga, como pôde ser conferido na primeira temporada, tem a surpresa como um de seus trunfos, com acontecimentos que desestabilizam a ordem sucessivamente.  Se Martin usa da surpresa, a HBO faz surpresa em cima das surpresas, com mudanças um tanto drásticas no rumo da história do livro, que enfraqueceram alguns personagens. Também a construção das cenas exagerou no estilo “desejo de audiência adulta”: as cenas de nudez e sexo mais que dobraram da primeira para a segunda temporada, na maioria dispensáveis para o entendimento da trama ou do caráter dos personagens. Essas cenas ocupam tempo exagerado nos cinco primeiros episódios, praticamente cessando nos cinco últimos – sinal de que a HBO acompanha a reação dos espectadores, que em sua maioria desaprovou essa escolha.
A cena mais esperada por fãs dos livros nesta temporada era a Batalha do Água Negra. O próprio Martin escreveu o roteiro desse episódio, que ficou com o espetacular clima de tensão do livro. Foi possível notar o cuidado com produção, edição e interpretação. A suspensão do som, com tensos momentos de silêncio absoluto antes da explosão da substância fogovivo), as cenas no ambiente do cerco, onde senhoras e a rainha regente esperavam a batalha acabar, os combates corpo a corpo e a atmosfera dos navios de ataque – estava tudo lá. Com o clima mantido, o fato de a batalha em si não chegar visualmente ao esplendor das guerras de O Senhor dos Anéis (provavelmente por causa do orçamento da HBO) pôde ser facilmente superado. O ambiente de desespero mal-contido da guerra contaminou todos os personagens que do episódio. E a metáfora final, com a rainha regente Cersei contando ao filho a história de leões, lobos e veados (símbolos das casas em guerra) foi um toque digno de Martin, deixando claro que a palavra do autor estava diretamente ali.

Em meio a batalhas, sangue, honra, desconfiança e à extrema humanidade dos personagens, a trama medieval da segunda temporada de Game of Thrones deixa aberturas para pensar o político e o humano do nosso próprio tempo. Para aqueles que desejam se aprofundar na saga, os cinco primeiros livros de As Crônicas de Gelo e Fogo já foram lançados no Brasil pela editora Leya. Mas para ter os cenários e as interpretações que a série proporciona, é esperar pela continuação no próximo ano.

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